Tuesday, January 24, 2006

O miserável e o vagabundo

De nobre, Charles só tinha o nome. Na verdade, já andava cansado de chegar em casa e se deparar com a miséria em que vivia com Ana Rosa e os seis filhos. Sete com o que crescia na barriga da esposa. Além de estar desempregado, a falta do que vestir e até do comer atormentava-lhe a cabeça e o único refúgio eram as doses de pinga barata, que comprava fiado no boteco da esquina.

O golpe fatal veio com a ordem de despejo do barraco onde morava, distante quase trinta quilômetros da cidade. Os vizinhos até sentiram pena, mas nada podiam fazer, pois a situação nas redondezas era a mesma, algumas até mais graves.

Os dias iam passando. A pobreza ardia nos corpos secos e nos olhos cansados das crianças e da esposa, cuja barriga, inexplicavelmente, ainda crescia. A única pergunta que Charles se fazia a todos os instantes era se realmente existia um Deus, capaz de acabar com aquela agonia.

Um dia, no mesmo boteco, agravante das brigas com Ana Rosa, Charles encontrou um amigo de infância. Antônio também não havia estudado, mas a inteligência, fora do comum, lhe fizera um homem quase bem sucedido. Mesmo que os caminhos fossem os mais tortuosos, as amizades com os políticos baseavam uma “vidinha mais ou menos”.

Charles se sentia feliz de rever o amigo e com uma ponta de inveja pelo simples fato de o outro não passar fome. Sentia também o amargo que lhe brotava do estômago, ao perceber que, para levar a “vidinha”, Antônio não se importava nem um pouco com esta tal honestidade, que impedira tantas vezes Charles de ganhar um trocado a mais para dar, ao menos, de comer aos filhos.

A conversa foi avançando e, no meio da madrugada, Antônio disse ao amigo que estava se mudando para uma região muito valorizada da cidade. O valor do terreno? NADA. A área era muito boa. Os donos deviam milhões em impostos e teriam certa dificuldade para retirar os invasores. E como o grupo já era grande, a briga seria boa.

Charles se animou quando soube que cerca de quatro mil famílias já estavam de mudança. Enfim, ele seria o futuro rei de seu pequeno território, fazendo jus ao nome, inspirado em um destes príncipes abastados, que nunca sentiram o estômago doer de fome.

Não tinham muito o que levar: uma cama de casal e duas de solteiro, onde as crianças se espremiam para dormir; o caixote velho, onde ficavam as duas panelas, que raramente cozinhavam um pedaço de carne; um fogãozinho de duas bocas, que requentava até por quatro vezes a refeição cujo último grão fazia diferença; os trapos iam nas caixas de papelão e, por último, um saco preto com as miudezas.

Mudança feita e a sensação singular da primeira perspectiva de vida davam outro ânimo. Charles largou a cachaça, arregaçou as mangas e sentiu como nunca uma grande vontade de ganhar o mundo, como o super-herói que era visto pelos filhos. Com uma casa própria, não precisavam mais fugir dos donos de barraco, quando o dinheiro do mês não era suficiente para pagar o aluguel e comer. Enfim, “os filho agora podem continuar os estudo”. Iam ter uma vida melhor que a do pai (ou não). Não repetiriam a vida de privação que levavam.

Era maio. Seria o primeiro outono feliz da família. Charles voltara a fazer alguns trabalhos como pedreiro. Todo o dinheiro que entrava, ia para a construção do barraco, que agora deixara de ser um sonho longínquo. Cinco meses foram suficientes para os três cômodos serem levantados.

Os posseiros se sentiam vitoriosos. A área de mais de 40 mil metros quadrados havia se transformado em um bairro, “Sonho Real” de milhares de famílias. No local, bares, mercadinhos e até uma ONG, que cuidava da educação dos pequeninos. Casas de diversas formas e tamanhos também já estavam erguidas, denunciando a situação de muitos que se diziam carentes, mas, na verdade, só queriam tirar proveito. Políticos, policiais, comerciantes, empresários encabeçavam a luta. Os miseráveis, como Charles e a família, engrossavam o movimento. Sem saber, eram massa de manobra para ostentar a ambição de pessoas como Antônio, que nem de longe poderia ser chamado de miserável. Enquanto isso, a esperança por uma vida melhor ia crescendo incontrolavelmente.

Já na nova casa, Ana Rosa dera à luz uma bela menina, que crescia sem ter noção do momento que a família vivia. Maria Vitória nasceu linda e saudável. Agora, o que realmente importava era seu objetivo: defender a todo custo seu pequeno território.

As eleições para prefeito já estavam em segundo turno. Ambos os candidatos precisavam dos dois mil eleitores da invasão. Os invasores também precisavam dos políticos para defender um sonho distante de poucos e o lucro de muitos. As promessas vazias eram incontáveis e continuavam a alimentar as esperanças dos miseráveis.

A vida parecia equilibrada, quando a mídia local anunciou o mandado de reintegração de posse da área. Começava então o pesadelo.

Antônio, como um dos líderes do movimento, tratou logo de fazer a cabeça dos miseráveis. Junto com a vontade de vencer, a influência do vagabundo agiu como um tonificante para a valentia dos sofredores sem-teto. Charles, mais uma vez, incorporou o espírito do “super Charles”. Colocou os filhos no colo e prometeu que de lá não sairiam mais. “Papai prometeu. Super-herói não mente”, disse um dos pequenos. A invasão se tornou uma das maiores do estado. O confronto com a polícia, a justiça e o resto da sociedade os faria entrar para a história.

Depois de sete meses, o “Sonho Real” se tornara um pesadelo para muitas famílias.
“Antônio falou que ninguém poderia sair do sonho, nem pra botar comida em casa”. E mais uma vez Charles amargava a dor de ver seus filhos passando fome, não conseguia cumprir a promessa de ser feliz para sempre. Agora, o coração doía ainda mais quando a inocente Maria Vitória chorava ao sugar o seio desnutrido e seco de Ana Rosa. Mas a esperança não morria. Ele lutaria até o fim para defender o que já considerava seu.
A terra que traria a paz se transformara em um campo de batalhas. Agora, fazia parte da rotina caçar garrafas para fabricar bombas caseiras e produzir armas artesanais de madeira para enfrentar a polícia. Todos estavam armados, inclusive com o medo não disfarçado pelo olhar assustado.

Ana Rosa achava o marido frio. Ela imaginava que ele não percebia a vida desgraçada que a família levava. Em seu coração, o amor que sentia pelos filhos falava mais alto e a vontade de sair daquele inferno era perene. Pra ele, o amor também era muito grande, daí nascia a força para lutar por aquele teto. Podia não demonstrar, mas seu comportamento refletia a vontade de garantir a vida das crianças.

Cada dia parecia interminável. As notícias da retirada e a fome que acometia muitas das famílias do local faziam o sofrimento aumentar intensamente. Depois de semanas de medo da entrada da polícia na área invadida, enfim, chegou a semana decisiva. As guerras em outros países, vistas nas poucas TVs, da parte pobre da invasão, pareciam invadir a vida das famílias miseráveis. Por noites seguidas, as trocas de tiro espalhavam o pavor. Finalmente, em uma quarta-feira ensolarada, dois mil homens da polícia cumpriram a decisão judicial. A situação não podia ser pior: Antônio não estava lá para conferir. Fugiu no início da noite juntamente com os outros líderes gananciosos, afinal, as denúncias de venda irregular de lotes e as prisões decretadas lhes pesavam sobre as costas.

Charles empenhava todas as forças no confronto, como se tivesse o peito de ferro. Lutava como um guerreiro espartano para conquistar seu espaço. Até que uma cena lhe comoveu: viu os olhinhos espantados do filho mais velho pedindo insistentemente que o pai desistisse. “Quero mesmo é lutar pela vida, com você vivo, papai. Vamos embora. Eu sei que esse mundo é injusto, que a vida é difícil, mas vamos tentar de outro jeito. Acredito que você é invencível, mas vamos partir para outra batalha”.

Tarde demais. Um tiro pelas costas só deixou a Charles um último minuto, suficiente para se lembrar de toda a sua vida, desde criancinha. O choro da sua esposa e dos filhos pequenos, que não entendiam nada, intensificava o último segundo de sofrimento. A correria e os tiros para todos os lados deixavam a sensação de ir direto para o inferno. Isso lhe deixou a certeza de que até a fé se compra com condições dignas de sobrevivência. E agora, o que seria de sua família?

A vida desgraçada se esvaia. Os sons agora eram distantes a luz do sol brilhante enfraquecia cada vez mais. Só escuridão e um vento frio terrível. A sensação de vazio era só o que sentia. Charles não era príncipe nem de si mesmo. Morreu amargando a culpa de nascer pobre e o sentimento de ser vítima de um mundo cruel que não dava chance para a felicidade dos desventurados reféns da injustiça social. Pior ainda, fracassara diante dos filhos, que esperavam, no mínimo, proteção daquele que lhes dera a vida.

Antônio é que estava certo. Não teria o mesmo fim de Charles. Procuraria agora outra forma de se safar dos crimes e partiria para outra. Afinal, o mundo é dos espertos. Só eles são felizes sem culpa. Charles agora voava. Passeava em cima da confusão, mas nada podia fazer, somente observar sua família, que agora teria que lutar sozinha, sem o super-herói, que estava morto, sem provar que era o mais forte e lutaria contra todos por aqueles que tanto amava.

Comments:
Hum, quanta inspiração, hein?! Na verdade, também acho que a desocupação foi uma das maiores chacinas em Goiânia, além, claro, de acentuar o quão comovente é a luta por trabalho, comida, terra e habitação.
 
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